31 agosto, 2010

A história da comida da Rafa

A Rafaela não come pimenta. Se você reparar bem, isto é perceptível porque ela dorme às três da madrugada todo dia, e quem vai dormir nesse horário janta, pós-modernamente, à meia noite e meia. Ninguém que janta à meia noite e meia vai comer pimenta porque “janta” só se diz no interior. No interior, as pessoas são mais leves, menos rudes, tem toque e sabem trabalhar. Porrrrrtanto, as pessoas que moram no interior não comem pimenta, ainda mais à noite, antes de ter pesadelos. Rafaela é do interior.

A Rafaela costuma selecionar o que comer muito bem porque odeia “passar mal” e ter que pedir ajuda. Ah, no interior as pessoas têm mania de pedir ajuda, ainda mais quando comem pimenta e têm alergia ou, quem sabe, dor no estômago de madrugada (então Rafaela, além de não comer pimenta, janta de madrugada, porque, se for pra passar mal, que seja de manhã...depois que a comida tiver “feito o estrago”) .

Rafaela acha isso estranho e se constrange quando liga pra alguém e pede algo daquela pessoa. Ela não gosta de ser o outro na situação de quem vai decidir se dará ou não a concessão do pedido. Rafaela diz “sim” a quase tudo, mas nunca alguém diz “sim” pra sua vontade de ser permitida. Rafaela já foi mais nítida quando sabia o que dizer. Hoje, retrocedeu.

Apesar de a sua identidade dizer que nasceu em uma cidade grande, era do interior de qualquer sensação que fosse dogma rural. Pra ela, um dogma rural é comer bem. Comer bem não porque faz bem à saúde, não; Rafaela nunca foi essas carambolas de senso comum que a gente ‘tá “pelas tampas” de engolir. Comer bem é comer história. Quando o médico diz pra você “educar seus hábitos alimentares” ou “comer coisas saudáveis” ele está mandando você comer suas memórias, que curam doenças.

Quando Rafaela quer comer bem é porque deseja lembrar-se de alguma coisa. Comida traz cada detalhe pra vida dela que você até morre de rir quando surge daquelas suas mãos o gesto estupefato e estabanado chacoalhado, como se a comida fosse sumir da sua boca esvaziada pela gargalhada, ou quando ela chora, sabendo que uma ou duas pessoas no mundo sabem que ela não gosta de falar enquanto come! Ai, eu adoro a Rafaela! Claro, ela não come pimenta!

Pimenta nunca faz você se lembrar de algo bom, faz?!

Ela se lembra de quando veio molho demais no sanduíche porque alguém se vingou dela – a Rafaela sempre reclama de alguma coisa que está errada na comida. O primeiro sorvete que ela pagou pra melhor amiga foi daqueles com calda que derrete o leite congelado....  sunday com cobertura triplicada e fugir tarde da noite pra comer eram outros feitos de outros amigos. O companheiro das antigas, quando descobria a saudade da namorada, saía correndo pra casa da Rafa e os dois saíam correndo pra comer qualquer coisa correndo que viesse acompanhada de muitas batatas fritas proibidas – porque sempre estavam em regime. Ai, eu adoro a Rafaela! E os seus quatro amigos!

Dá pra lembrar também, toda vez que ela come qualquer tipo de carne viva, que foi no seu aniversário que os amigos de verdade a levaram pra jantar, e que, por amizade, ela já chegou a se permitir comemorar – em segredo, em outros anos – o mesmo aniversário (aniversário é uma coisa tão nonsense, que eu não entendo porque ele sempre se repete...) com a sua melhor amiga nos lugares que tinham as comidas de que gostavam. A Rafaela só deixava porque os aniversários eram no mesmo dia e, desta forma, ninguém se lembraria do dela!

Ela se lembra da primeira vez em que pôde passar no drive thru sozinha, porque sempre sonhou em dirigir, só pra ser independente e passar no drive thru. Rafaela boba.... rs!

Quando ela come coisas que são duas (sanduba com duas carnes, bolacha com recheio preto e branco, suco de morango com laranja que se come), consegue se lembrar de que tem um amigo que vive comprando as coisas vezes dois. Duas bolachas, dois salgadinhos, dois chocolates.... porque ele morre de medo de que Rafaela coma os que ele comprou só pra ele, entende?! rs! Tem amigo que elogia a comida ruim que a própria Rafaela faz, só pra não ter que cozinhar ou, então, deixa que ela almoce sorvete.

Quando Rafaela é ela mesma, lembra também de que descobriu o pó de guaraná pra escrever o seu melhor texto acadêmico. E que nunca tomou café. Acha horrorosa aquela coisa fétida que os pseudo-amigos gostam. Quando alguém quer fingir que é seu amigo, te leva pra tomar café. Mas, se for amigo de verdade, como os que a Rafaela tem, vai com você só nos lugares clichês que vocês adoram, e onde podem se esconder dos ridículos públicos. Ou vai pra sua casa num dia totalmente incomum pra comer silêncio, mudar seu guarda-roupa de lugar, escrever um poema-música totalmente sem sentido, ou provar a comida feita por você, cheia de pimenta, colocada, sem querer, no prato preferido dele.

Era melhor ter feito um hotpocket no microondas mesmo. Ou ter comido a modalidade de pimenta que cicatriza as feridas; e sozinha, Rafaela. Amigos são pra quem tem dignidade pra os perder.