25 março, 2011

Meus pés respiram

Nunca durmo com os pés cobertos. Me deu na telha que faz mal pra saúde.

Simples: respirar é vital e ninguém deixa que os pés tomem conta disso durante o dia. Por gratidão de um corpo cansado - acho que mais mal agradecido do que cansado - conta-se por aqui que os pés são a respiração do corpo durante o sono. Por onde o ar invade o corpo é de onde nasce um sonho. Descobri, assim, que é de um pé que nasce um sonho.

O corpo só sonha se os pés respirarem (afinal, sonho é um emaranhado de ar que num tem fim). Do contrário, sonhos não serão sonhos, mas apenas pensamentos. Ficam presos ao conteúdo de uma miséria, de uma dúvida, de uma diligência ou de nada. Sem pés livres, sem sonhos.

Sonho é uma estrutura complexa que precisa de ar pra sobreviver a uma densa noite de descanso.

São os delicados ou eufóricos pés que denunciam ao meu corpo os lugares todos que eu ou vi, ou inventei. Aqueles onde quis ter caminhado mais, ou aquele outro onde eu deixei marcas na grama quando tropecei. Grandes ou pequenos espaços onde desejei andar em círculos. Lugares onde, nus, meus pés tocaram o chão ao, por respeito, despirem-se dos sapatos.

Noite passada, meus pés contaram que eu perdi a vontade de caminhar o meu caminho. O sonho inventou que eu queria ter, numa visão um tanto etérea, caminhado sem sair do mesmo lugar.

Eu sei que eles também contam dos lugares onde nunca andei mais do que meia dúzia de passos rápidos, mas que, por clemência dos meus ouvidos, ali ansiava ficar, estaticamente ali, ouvindo a mesma voz que tira os meus pés do chão e transforma um pensamento em sonho, mesmo sem dormir, mesmo sem acordar.

São meus pés que têm em alguém um lugar pra sempre.

Meus pés conversam com tudo o que o meu corpo deixou de ser. Acho que tornei irrelevante o caminho e os desviei, os pés, da forte sensação de que a estrada mudava de rumo. Eles contaram ao meu descaso que outros pés vieram em minha direção e que, por incredulidade, eu os paralisei.

Pés que não caminham impedem as mãos de se unirem. A distância continuou maior do que o caminho e o amor que ainda não é de ninguém permaneceu.

Aprendi que meus pés não me dariam preocupações se eu não caminhasse demais. Doeriam menos. Aprendi errado. São os pés que dizem o que está por vir; que vigiam pelo meu corpo os movimentos de quem me alcança.... São os pés que, sem querer, ficam brincando com o menino bonito que gosta de caminhar pra me abraçar. Às vezes corro dele, às vezes recuo, às vezes só espero.

É por isso que não podem ser outros a não ser os pés que produzem os sonhos. Os pés sabem desenhar pro corpo cada detalhe que deixei de viver. Revelam que sou o que sou porque cheguei atrasada para dar o único passo necessário à transformação de um dia em eternidade.

Os pés não transformam sonhos em realidade... eles são a parte real dos sonhos.