27 agosto, 2010

não use um lápis 6B

O impossível não acontece. Em todos os momentos de sua chegada, eu preferi falar sobre política, economia e sobre como acender e apagar a lâmpada com interruptor quebrado do meu quarto. Na última vez, percebi que o impossível quase entrou no momento em que a luz falhou; por pouco não me viu, não me discursou. O impossível não acontece, e, vendo meus olhos que eu consigo fugir, minhas mãos previnem: não deixamos a palavra chegar. Dizer ou morrer são situações irmãs e eu evito a ambas se evitar as minhas mãos. Posso carregar um porta-lápis, um porta-treco ou um porta-palavra, mas nunca devo carregar comigo o que dizer, nem um lápis, ainda mais 6B (porque senão vira música...já tentou escrever partitura com 6B? é maravilhoso). Se posso agradecer a alguém, agradeço com um gesto, se preciso de um não, dou-o com pés, e, se é momento de dizer, torno-o impossível. Apago as luzes, imito uma pulga, desligo o rádio, corro para a geladeira e permaneço não-dito. Contudo, pro outro, aconteceu. Eu não sei como, mas ele entendeu o que eu não disse. Eu não virei o porta-retrato para a parede, eu não deixei o livro marcado na página, eu não larguei a louça na pia. Eu fui correndo pra debaixo do tapete, eu contei um, dois, três, quatro, cinco até parar de tremer, eu abri os olhos morrendo de medo. Ele me leu, em voz alta. Ele quis forçar-me a deixá-lo feliz, a magoá-lo, a acontecê-lo, a entristecê-lo, a namorá-lo. Tentou dizer o que não estava escrito, tentou achar cada palavra nesses lugares velhos que eu tenho, cheios de cupim e jogou fora os farelos das pausas da palavra que não existiu... Foi violação, desajuste. Com medo, com raiva e sem palavra, li, sem a minha letra, o que nunca foi meu texto. Ah, não... Expôs meu tesouro, minha herança, meu legado obsoleto. Me leu em voz alta e negou ao sentido do silêncio o que o enterraria intacto. Ninguém traduziu a lápide da palavra. Tirou de mim meu não dito, gabando-se de realizar o impossível.